Lectio Divina é a leitura
crente e orante da Palavra de Deus. Na sua origem, ela nada mais é que a
leitura que
os cristãos faziam da Bíblia para animar sua fé, esperança e amor.
Ela é tão antiga quanto a própria Igreja,
que vive da Palavra de Deus e dela depende
como a água da sua fonte (Dei Verbum 7.10.21).
Inicialmente, não era uma leitura organizada e metódica, mas era a
própria Tradição que se transmitia,
de geração em geração, através da prática
do povo cristão. A expressão Lectio Divina vem de Orígenes.
Ele diz que, para
ler a Bíblia com proveito, é necessário um esforço de atenção e de
assiduidade: "Cada
dia, de novo, como Rebeca, temos de voltar à
fonte da Escritura!" E o que não se consegue com o
próprio
esforço, assim ele diz, deve ser pedido na oração, "pois é
absolutamente necessário rezar para
poder compreender as coisas divinas". Deste
modo, assim ele concluiu, chegaremos a experimentar o
que esperamos e
meditamos.
Para São Bento, a LD conduz à perfeição: para São Bernardo,
infunde sabedoria; para São Ferreolo, cria
o fervor espiritual; para Bernardo
Ayglier, dissipa a cegueira da monte, ilumina o entendimento, sana
a debilidade
do espírito, sacia a fome da alma produz a contrição do coração.
Seus frutos são:
1 . Viver, pensar e falar como a Bíblia: As
idéias, expressões, imagens da Escritura se convertem
no patrimônio espiritual
. A Bíblia passa a formar parte integrante da personalidade. Ao apropriar-se
da
palavra de Deus, a pessoa vive, pensa e fala com a Bíblia e como a
Bíblia.
2. Maturidade na fé: a LD edifica e constrói a alma
porque o homem é o que lê. O homem novo que
cada um se empenha ser no batismo,
chega, pela LD, à maturidade. O homem novo, para ser interlocu-
tor válido de
Deus precisa ter a Escritura enraizada em si, isto é, se torna a própria
substância da pessoa
e conceber continuamente a Palavra de Deus no
coração.
3. Piedade objetiva: a LD edifica-se sobre
acontecimentos, modelos e mistérios reais com que o cristão
procura
identificar-se e não se baseia em imaginação e sentimentalismo.
4. Vida de oração: Ao responder às interpelações de
Deus, em sua Palavra a pessoa ora, fala com Deus
louvando, agradecendo,
suplicando e intercedendo, de acordo com a sua situação.
5. Experiência de Deus: significa estar unido a Deus
por meio de Cristo. A alma da pessoa sente-se
íntima e fortalecida com a
presença dele. A pessoa sabe, percebe, saboreia a sua presença.
6. Alegria interior: São Paulino de Nola assim
descreve a prática da LD: "Viver com a palavra de
Deus, meditá-las
sem saber nada fora delas, não te parece que é ter aqui na terra uma morada do
reino celeste?".
MÉTODO DOS QUATRO DEGRAUS
A
sistematização da LD em quatro degraus veio no séc XII, Por volta do ano 1150,
através de um monge
cartuxo, chamado Guigo. Disse ele: "Certo dia,
durante o trabalho manual, quando estava refletindo
sobre a atividade do
espírito humano, de repente se apresentou à minha mente a escada dos quatro
degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração, a contemplação. É
verdade, a escada tem
poucos degraus, mas ela é de uma altura tão imensa e
inacreditável que, enquanto a sua extremida-
de inferior se apoia na terra, a
parte superior penetra nas nuvens e investiga os segredos do céu"
1. Leitura
A leitura é o primeiro passo para se conhecer e amar a Palavra de Deus. Não
se ama o que não se conhece.
É o primeiro passo para familiarizar-se com a
Bíblia, para que ela se torne nossa palavra, capaz de
expressar nossa vida e
nossa história, pois ela “foi escrita para nós que tocamos o fim dos
tempos”
(1Cor 10,11).
A leitura é o ponto de partida, não é o ponto de chegada.
Recomenda Orígenes: “Vejam se seguram as
palavras divinas de forma a
não deixá-las cair, escapar das mãos, e assim perdê-las. Quero exortá-
los com
um exemplo tirado dos costumes religiosos. Quem assiste habitualmente aos
Divinos Misté-
rios sabe com que precaução, cheia de respeito, segura o Corpo do
Senhor, quando lhe é entregue;
não vá cair alguma migalha e perder-se uma parte
do tesouro sagrado. Sentir-se-ia culpado, e
com razão, se por negligência alguma
coisa se perder: Se quando se trata do Corpo do Senhor se
tem tanto cuidado, como pensar que negligenciar a Palavra de Deus tem menos importâcia?”
Todos temos dificuldades em ler. Há o vício de ler em diagonal,
ler depressa demais, ler para encher
o tempo, falta de gosto pela leitura,
falta de tempo, de interesse, de método. Pertencemos à civilização
da imagem,
espectadores passivos da TV ou das revistas. Ler, copiar o texto mais de uma
vez. Ler os
lugares paralelos indicados na Bíblia ou nas notas. “A
Escritura se interpreta por si mesma” é o grande
critério rabínico da
LD.
A Palavra pode ser difícil, estranha, exigente, não dizer nada. Há
vazios, silêncios. Não fugir do vazio da
tentação de escutar rádio ou folhear
revista é lamentável. Não ter medo de sentir a incapacidade de rezar
e de o
experimentar é uma graça. Não leias simplismente com os olhos, mas procura
imprimir o texto
em teu coração
O objetivo da leitura é ler e estudar o texto até que ele, sem
deixar de ser ele mesmo, se torne espelho para
nós mesmos e nos reflita algo da
nossa própria experiência de vida. A leitura deve familiarizar-nos com
o texto
a ponto de ele se tornar nossa palavra. Cassiano dizia: “Penetrados dos
mesmos sentimentos em que foi
escrito o texto, tornamo-nos, por assim dizer, os
seus autores”. E aí, como que de repente, damo-nos
conta de que, por meio
dele, Deus está querendo falar conosco e nos dizer alguma coisa. Nesse
instante,
dobramos a cabeça, fazemos silêncio a brimos o ouvido: “Vou
ouvir o que o Senhor nos tem a dizer!”
(Sl 85,9). É nesse momento que
a leitura se transforma em meditação.
2. Meditação
A meditação vai responder à pergunta: o que diz o texto para mim,
para nós? A meditação indica o
esforço que se faz para atualizar o texto e
trazê-lo para dentro do horizonte da nossa vida e realidade
tanto pessoal como
social. O texto deve falar-nos.
Guigo dizia: “A meditação é uma diligente atividade da
mente que, com a ajuda da própria razão,
procura conhecimento da verdade
oculta”. Através da leitura, descobrimos o contexto da época. No
entanto, a fé nos diz que esse texto, apesar de ser de outra época e de outro
contexto, tem algo a nos
dizer hoje.
Uma primeira forma de se realizar a meditação é sugerida pelo
próprio Guigo. Ele manda usar a mente
e a razão para poder descobrir a “verdade
oculta”. Entra-se em diálogo com o texto, com Deus, fazendo
perguntas que
obrigam a esar a razão e que procuram trazer o texto para dentro do horizonte
da nossa
vida. Por exemplo: Quais os conflitos de ontem que existem hoje?
A outra forma é repetir o texto, ruminá-lo até descobrir o que ele
tem anos dizer. É o que Maria fazia
quando ruminava as coisas no coração (Lc
2,19-51). É o que recomenda o salmo ao justo: “Meditar
dia e noite na
lei do Senhor” (Sl 1,2). É o que Isaías define com tanta
precisão: “Sem Iahweh, o teu
nome e a lembrança de ti resumem todo o
desejo da nossa alma” (Is 26,8).
Após ter feito a leitura e ter descobrido o seu sentido para nós,
é bom procurarmos resumir tudo numa
frase, de preferência do próprio texto
bíblico, para ser levada conosco na memória e ser repetida e
mastigada durante
o dia, até se misturar com o nosso próprio ser.
A meditação aprofunda a dimensão pessoal da Palavra de Deus. Na
Bíblia, quem dirige a Palavra é
Deus, E Ele o faz com muito amor. Uma palavra
de amor recupera forças, libera energias, recria a
pessoa, o coração se dilata
até adquirir a dimensão do próprio de Deus, que pronuncia a Palavra.
“Pela
leitura se atinge a casca da letra, e se tenta atravessá-la para, na meditação,
atingir o fruto
do Espírito” (São Jerônimo). O Espírito age dentro da
Escritura (2Tm 3,16). Através da meditação,
ele se comunica a nós, nos inspira,
cria em nós os sentimentos de Jesus Cristo (Fl 2,5), ajuda-nos a
descobrir o
sentido pleno das palavras de Cristo (Jo 16,13).
É o mesmo Espírito que enche a
vastidão da terra (Sb 1,7). No passado ele animava os Juízes e
Profetas, hoje ele também nos anima.
A meditação é uma atividade pessoal e também comunitária. A
partilha do que cada um sente,
descobre e assume no contato com a Palavra de
Deus é muito mais do que só a soma das palavras
de cada um, é o sentido
Eclesial da Bíblia.
3. Oração
O que o texto me faz dizer, nos faz dizer a Deus? Guigo descreve a
importância da oração: ”vendo,
pois, a alma que não pode por si mesma
atingir a desejada doçura do conhecimento e da experiência,
e que, “quando mais
se aproxima do fundo do coração” (Sl 63,7), tanto mais distante é Deus
(cf. Sl
63,8), ela se humilha e se refugia na oração. E diz: “Senhor, que não és
contemplado senão
pelos corações puros, eu procuro, pela leitura e pela
meditação, qual é, e como pode ser adquirida a
verdadeira doçura do coração, a
fim de por ela conhecer-te ao menos um pouco”.
A oração, provocada pela meditação, inicia-se por uma atitude de
admiração silenciosa e de adoração
ao Senhor. A partir daí brota a nossa
resposta à Palavra de Deus. Fala agora a Deus, responde-lhe,
responde aos
convites, aos apelos, às inspirações, aos pedidos, às mensagens que te dirigiu
através
da Palavra compreendida no Espírito Santo.Não vês que foste
escolhido no seio da Trindade, no
inefável colóquio entre o Pai, o Filho e o
Espírito Santo? Não te detenhais mais a refletir demasiado;
entra em diálogo e fala como um amigo fala a seu amigo (Dt 34,10). Não procureis mais
confirmar
teus pensamentos com os seus, mas busca a Ele.
A meditação tinha por fim a oração. É agora o momento. Enzo
Bianchi recomenda: Nada de
tagarelice, fala-lhe com segurança, com
confiança e sem medo, longe de todo olhar sobre ti mesmo,
mas encantado com seu
rosto que emergiu do texto no Cristo Senhor. Dá livre curso a tuas
capacidades
criativas de sensibilidade, de emoção, evocação, e coloca-se a serviço do
Senhor.
Não posso dar-te muitas indicações porque cada qual sabe reconhecer o
encontro com seu Deus,
mas não pode ensiná-lo aos outros, nem descrevê-lo em si
mesmo. Que se pode dizer do fogo,
quando este está dentro dele? Que se pode
dizer da oração-contemplação no fim da Lectio Divina,
a não ser que é a sarça
ardente na qual o fogo queima?
É importante que esta oração espontânea não seja só individual,
mas também tenha sua expressão
comunitária em forma de partilha. Na oração
reflete-se ainda o itinerário pessoal de cada um no seu
caminhar em direção a
Deus e no seu esforço de se esvaziar-se de si para dar lugar a Deus, ao irmão,
à comunidade.
É aqui que se situam as noites escuras com suas crises e
dificuldades, com seus desertos e tentações,
rezadas, meditadas e enfrentadas à
luz da Palavra de Deus (Mt 4,1-11).
4. Contemplação
Cada vez, porém, que se chega ao último degrau, este se torna
patamar para um novo começo. Ele
recria a alma fatigada, nutre a que tem fome,
sacia a sua aridez, faz-lhe esquecer tudo que é terretre,
vivifica-a,
mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e, embriagando-se,
torna-a
sóbria.
São Paulo, na carta aos Romanos, depois de falar da História da
Salvação, do chamado dos pagãos,
queerámos nós, e da salvação final dos
judeus, exclama: “Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da
ciência de
Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetravéis seus caminhos! Quem
conhece
o pensamento do Senhor? Quem se tornou seu conselheiro?”. É um
grito de admiração. De louvor,
de adoração, de contemplação.
Contemplação é também a capacidade de perceber a presença de Deus
em tudo, nos acontecimentos,
na história, nos outros. Esta presença unifica os
casos da vida. Guigo diz: “A leitura busca a doçura
da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede e a contemplação a
saboreia.
A leitura levacomida sólida à boca, a meditação a mastiga e rumina,
a oração prova o seu gosto
e a contemplação é o gosto da doçura já alcançada”.
O que mais chama a atenção nos escritos de
Guigo é a insistência em descrever a
contemplação como uma saborosa curtição da doçura que
relativiza tudo e, como
que por um instante, antecipa algo da alegria que “Deus preparou para
aqueles que o amam” (1Cor 2,9).