Sermão sobre a Anunciação, por Santo António de Pádua
“O anjo Gabriel foi
enviado e..”
Acabamos de ouvir de que maneira a
Virgem Maria concebeu o Filho de Deus Pai. Vamos ver agora, brevemente, de que
jeito a alma concebe o espírito da salvação. Na Virgem Maria vemos representada
a alma fiel:“virgem” pela
integridade da fé. Com efeito, diz o Apóstolo: “Eu vos prometi a um único esposo, para
apresentar-vos como virgem casta a Cristo” (2Cor 11,2).
“Maria”, isto é, estrela do mar, pela profissão da própria fé. “Crê-se com o coração para obter a
justiça”, eis a virgem. “Com a boca faz-se a profissão de fé para obter a
salvação” (Rm 10,10): eis a estrela que da amargura do
mundo guia ao porto da salvação eterna. Essa virgem mora em Nazaré da Galiléia,
quer dizer, “na flor da emigração”.
A flor é a esperança do fruto. Com efeito, a alma fiel
espera “emigrar”, passar da fé à visão, da sombra à verdade, da promessa à
realidade, da flor ao fruto, do visível ao invisível. Dizem os pastores: “Vamos até Belém, porque ali
encontraremos bons pastos, o pão dos anjos, o Verbo Encarnado”.
Lemos em Isaías: “Alegria dos burros selvagens, pastagem dos rebanhos” (32,14).
Nos burros selvagens estão simbolizados os justos, cuja alegria será a pastagem
dos rebanhos, quer dizer, o esplendor e a felicidade dos anjos, porque junto
com os anjos pastarão, isto é, gozarão da visão do Verbo Encarnado. A essa
virgem é enviado o anjo Gabriel, cujo nome significa “Deus me confortou”. Nele
é indicada a infusão da graça divina e sem o seu conforto a alma desfalece. Por
isso diz Judite: “Dai-me forças, ó Senhor, Deus de Israel, nesta hora”. “E, com o punhal, golpeou duas vezes o
pescoço de Holofernes e cortou-lhe a cabeça” (13,9-10).
Holofernes significa “enfraquece o boizinho engordado”. Nele é representado o
pecador que, engordado com a gordura das coisas temporais, é despojado pelo
diabo das virtudes e assim se enfraquece e fica doente. A cabeça de Holofernes
é a soberba do diabo.
Diz Gênesis: “Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o
calcanhar” (3,15). No calcanhar é indicado o fim da vida. A
Virgem Maria esmigalhou a soberba do diabo por meio da humildade, mas ele a
tentou, no calcanhar, durante a paixão de seu Filho. Quem quiser arrancar de si
mesmo a soberba do diabo, deve golpeá-lo duas vezes. Esse duplo golpe é a
lembrança do nosso nascimento e o pensamento da nossa morte. Quem medita
assiduamente sobre esses dois momentos da sua vida arranca de si a soberba do
diabo, mas antes é preciso que implore o sustento da graça divina. “Agi virilmente e o vosso coração será
confortado” (Sl 30,25).
“Entrando o anjo onde
ela estava”.
Aqui é colocada em evidência a solidão da alma que
mora em si mesma, lendo no livro da própria miséria e indo à busca da doçura
divina: por isso ela merece ouvir dizer: “Ave!” O nome de Eva que quer dizer
“ai” ou desgraça. Lido ao contrário fica Ave. A alma que se encontra no pecado
mortal é Eva, ou seja, “ai” e desgraça, mas se ela se converte à penitência e
ouve dizer-lhe Ave, quer dizer “sem ai”. “Cheia de graça”. Quem derrama ainda
alguma coisa numa vasilha cheia perde tudo aquilo que nela coloca. Assim também
na alma, se ela for cheia de graça, não pode entrar nela a sujeira do pecado. A
graça penetra todos os espaços e não deixa nenhum pedacinho vazio em que possa
entrar e ficar aquilo que lhe é contrário. Quem tudo compra, tudo quer possuir.
E a alma é tão grande que ninguém pode preenchê-la a não ser somente Deus que,
como diz São João, “é infinitamente maior que o nosso coração e conhece todas as coisas” (1Jo
3,20).
Uma vasilha bem cheia derrama em todas as partes. Da
plenitude da alma recebem todos os sentidos porque, como diz o profeta
Isaías, “será de sábado a sábado” (66), quer dizer,
da paz interior virá a paz dos sentidos e dos membros. “O Senhor é contigo”. Ao
contrário, lemos no Êxodo: “Não irei contigo, porque tu és um povo de cabeça dura” (33,3),
isto é, desobediente e soberbo. É como se dissesse: “Eu iria contigo se fosses humilde!” Por
isso ao humilde ele promete: “Tu és o meu servo: mesmo que tiveres que atravessar as águas eu estarei
contigo e os rios não te submergirão. Se tiveres que atravessar o fogo, não te
queimarás, a chama não poderá te queimar” (Is 43,2). Nas
águas é simbolizada a sugestão do diabo, nos rios a gula e a luxúria; no fogo,
o dinheiro e a abundância das coisas materiais; na chama, a vanglória. O servo,
isto é, a pessoa humilde com quem está o Senhor, passa ileso através das sugestões
do diabo, porque nem a gula nem a luxúria o cobrem. Quem está com a cabeça
totalmente coberta não pode ver, cheirar, falar e ouvir distintamente. Assim,
também quem estiver totalmente coberto pela gula e pela luxúria fica privado da
faculdade de contemplar, discernir, reconhecer o seu pecado e obedecer. O
humilde, mesmo que caminhe através do fogo das coisas temporais, não se queima
com a avareza ou com a vanglória.
“Tu és bendita entre as
mulheres”.
Lê-se na História Natural que as mulheres sentem compaixão
bem mais intensamente do que os homens, derramam lágrimas bem mais do que os
homens e possuem uma memória muito mais duradoura do que os homens
(Aristóteles). Nessas três qualidades são indicadas a piedade com o próximo, a
devoção das lágrimas, a lembrança da paixão do Senhor. Lemos no Cântico dos
Cânticos: “Coloca-me como um selo em teu coração, uma tatuagem em teu braço, porque
forte como a morte é o amor!” (8,6): o teu amor
pelo qual morreste! Bem-aventuradas aquelas almas que possuem essas três qualidades.
Entre elas é bendita, com o privilégio de uma bênção especial, a alma fiel e
humilde, rica de obras de caridade. E em mérito a essa bênção, continua: “Eis que conceberás e darás à luz um
filho e lhe porás o nome de Jesus”. Lemos ainda na História
Natural que as mulheres grávidas sentem dores, perdem o apetite, a vista fica
anuviada. Outras mulheres grávidas não gostam de vinho, porque bebendo-o perdem
as forças. Isso acontece também com a alma. Quando, sob a ação do Espírito
Santo, concebe o espírito da salvação: começa a arrepender-se de seus pecados,
sente repugnância pelas coisas temporais, desagrada-se a si mesma, (este é o
significado do anuviamento da vista); acostumada a admirar-se com gosto, não
gosta do vinho da luxúria.
Por estes sinais poderás julgar se a alma concebeu o
espírito da salvação que em seguida dará à luz quando der fruto na luz das
obras boas. E a esse fruto dará o nome de “salvação” (Jesus),
porque tudo o que faz é em vista da salvação. É a intenção - foi dito - que
qualifica a obra. A alma fiel age para agradar a Deus, para obter o perdão dos
pecados, edificar o próximo e alcançar a salvação. Digne-se conceder a salvação
também a nós Aquele que é bendito pelos séculos dos séculos. Amém.
-- Dos Sermões de Santo Antônio de Pádua (século XIII)
Fonte : Tesouros da Igreja Católica
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