A NECESSIDADE DO
MISTÉRIO
É provável que muitos católicos pensem
muito pouco sobre sua própria salvação, mas talvez não pela razão mais óbvia: a
falta de diligência sobre a sua salvação é consequência da secularização, pois
somos parte de uma cultura que continuamente nos orienta para longe de Deus.
Mas uma segunda ideia dá conta de outro
motivo: uma falsa segurança, injustificada, de que não temos muito com o que
nos preocuparmos. Afinal, Cristo morreu pelos nossos pecados, e agora temos
dois entendimentos: (1) o sacrifício de Jesus é suficiente, os
mandamentos foram cumpridos em sua plenitude e a nós cabe apenas amar o próximo
e fazer o que nos convier (uma falsa interpretação de Santo Agostinho); ou (2)
somos capazes de pelo nosso esforço de satisfazer a Deus (uma espécie de Pelagianismo,
uma antiga heresia na Igreja).
De qualquer maneira, muitos passam pela
vida pensando que a salvação é automática, ou, pelo menos, pode ser
controlada inteiramente por nós quando envelhecermos. É um entendimento
errado da Carta aos Filipenses: "continuem a trabalhar com temor e
tremor, para a vossa salvação " (Fp 2,13b) O
apóstolo não apenas diz isto para outros como também leva seriamente este
ensinamento para a sua vida:
Faço tudo isso pelo Evangelho,
para me tornar participante dos seus bens. Não sabeis que os que correm no estádio, embora todos corram, só um alcança o prémio? correi, pois, de tal maneira que o alcanceis. Todos os competidores de tudo se abstêm, para alcançar uma coroa corruptível; nós, porem, para obter uma coroa incorruptível. Quanto
a mim, não corro sem rumo; combato, não como quem açoita o ar, mas castigo o meu corpo e reduzo-à escravidão, para que não suceda que, tendo pregado aos outros, eu próprio venha a ser
reprovado. (1 Cor 9,23-27)
Se o apóstolo, que colocava sua vida nas
mãos de Cristo, tinha esta atitude, o que dizer de nós? O Beato John Newman
identificou uma parte importante do nosso problema quando observou que ambas
atitudes incorrectas sobre nossa salvação tem origem no nosso relacionamento com
o Mistério de Deus:
Aqueles que acreditam poder agradar a
Deus ou que a perfeita obediência possa ser atingida pelos seus próprios
esforços, não tem mais respeito ou reverência por sua religião do que quando
move seu corpo e decide por sua cabeça. E aqueles que consideram a Paixão
de Cristo como um fato que absolutamente assegura a sua própria salvação, até
pode ver mistério na Cruz, mas não verá obediência, e terá pouco apreço pelas
orações e celebrações. Será uma pessoa livre, que apenas presume a presença de Deus.
Pois eis aí algo que os santos místicos
facilmente compreenderam, pois percebem a Deus com um "mistério
tremendo", algo tão superior à imaginação humana que pode apenas inspirar
admiração. Aqui estamos nós, meros mortais, criados do nada e continuamente
sustentados por Deus, cuja existência é Sua essência, Deus que apenas não pode
ser! Somos, de fato, criados e sustentados por uma torrente de amor infinito
que ainda não somos permitidos experimentar, ou seja, ver Deus face a face,
pelo menos até morrermos.
Além do mais, fracos e indecisos, somos
dependentes deste amor. Não temos absolutamente nenhum direito de
recebê-lo a não ser a partir da própria afirmação de Deus que deseja nos amar,
do que deu provas no sacrifício da Cruz. Através do seu Filho, Jesus Cristo,
Deus arcou com o horror dos nossos pecados, tornando-se "um
verme, não um homem"(Sl 22,7). Uma inconcebível condescendência!
Portanto agora, comparado com este incompreensível amor de Deus, comparado com
o fogo perpétuo do seu amor, como alguém pode ser complacente sobre seus
merecimentos para gozar a vida eterna?
De fato, já foi dito que a familiaridade
gera certo descaso. Algumas vezes é necessário dar um passo atrás e contemplarmos
seriamente aquilo que consideramos simples e óbvio. Devemos ser absolutamente
diligentes sobre nosso comportamento frente a Deus. De acordo com a Igreja, nenhum de nós pode ter plena certeza de sua
salvação. Ao contrário, se procurarmos viver em Seu amor de consciência limpa, então
podemos ter confiança nas promessas de Cristo. Ou, como escreveu São Paulo: Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência de que nos temos comportado no
mundo e, especialmente convosco, com a santidade e sinceridade
que vêm de Deus, não com uma sabedoria carnal mas a graça de Deus. (2Cor 1,12)
A este estado não chegamos sem algum
esforço, e uma vez alcançado, deve ser muito bem guardado. É
exatamente o tipo de temor e terror que nos fala o salmista: Quem pode
discernir os próprios erros? Purifica-me das faltas escondidas! (Sl 19,13). Não poderíamos, então, muito facilmente nos
afastarmos desta graça de Deus ao não prestarmos atenção ao amor de Deus,
nos acomodando em conversas e assuntos humanos? Não é exatamente isto que o
Senhor condena? E porque transgredir os mandamentos de Deus apenas para
satisfazer a sua própria vida? Por conta dos nossos desejos, tornamos a palavra
de Deus vazia. Contra isto alertou o profeta Isaías e relembrou Jesus,
quando disse: Esse povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. Em vão me prestam culto; as doutrinas que ensinam são preceitos humanos. (Mt 15,8-9).
Sim, é muito fácil reduzirmos o Amor de
Deus a um comportamento convencional, nos contentarmos com as normas do nosso
tempo e lugar, ficarmos complacentes com nossa salvação, esquecermos a inefável
glória e terrível santidade de Deus. É exatamente este senso de mistério, muito
frequentemente perdido nas constantes tarefas da vida moderna, que nos leva a
esquecer a graça, é este senso de mistério que nos recorda Deus, quem nós somos
e quem é Deus. Alguns momentos de reflexão ajudam a relembrar este mistério.
Talvez muitos de nós estejam precisando deste momento de reflexão.
Fonte: Tesouros da Igreja Católica
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